sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Minha Fortaleza

Eu caminhei durante anos no deserto de minha vida, carregando comigo as poucas coisas realmente importantes, que tinham algum significado para mim. Coisas que marcaram minha vida, e que de modo nenhum eu abandonaria. A estrada tinha sido longa, cansativa, mas no fundo recompensadora. Já havia passado por tantas tormentas, me fortificado tanto, que um dia, enquanto parava numa fonte de águas para matar a minha sede, olhei meu próprio reflexo na àgua, me reconhecia, mas estava tão diferente. Mais velho robusto, com um tom de serenidade no rosto que parecia inabalável, mas que no fundo carregava uma aura de medo no futuro. Os olhos estavam mais cansados, porém mais profundos. Escondiam algumas tristezas, mas muitas alegrias durante a caminhada.
Cavalguei durante muito tempo no deserto, procurando um lugar para me fixar, cansado dessa vida nômade, vivendo de alegria em alegria, de tristeza em tristeza, mas sempre combatendo um combate solítário, amparado apenas pelos meus tesouros pessoais, os quais carreguei por toda a minha vida, e por minha fé, que tinha me guiado nos momentos de escuridão, e me mostrado a saída das Tempestades, o Criador o sabe.
Mas a caminhada já se fazia longa, e eu não mais queria encontrar as tormentas do caminho, queria encontrar um abrigo onde podia morar em paz, e cultivar meus tesouros com serenidade e sabedoria, onde eu pudesse encontrar o melhor que há em mim.
Foi quando eu avistei a primeira morada, no horizonte além das dunas, podia se ver o despontar de suas torres no vento do deserto. Meus olhos se fixaram no horizonte e eu exitei por um instante, era um caminho diferente do que eu costumava a seguir, não conhecia essa nova direção, mas meu atual caminho se perdia ao longe sem me mostrar nenhuma esperança de encontrar uma morada, enquanto esse, mesmo que desconhecido, poderia me levar e encontrar o local de origem das torres que se despontavam no horizonte.
Quão difícil foi a decisão daquele dia. Durante alguns instantes fiz uma oração ao Criador, pedindo sua proteção para essa nova jornada, subi em meu cavalo e caminhei para meu novo destino. Meu antigo caminho se perdia atrás de mim, até que finalmente não pude mais observá-lo. Agora, só me restava prosseguir para encontrar a morada.
Aqueles foram dias de ansiedade, a cada dia as torres iam se definindo no horizonte, e onde havia areia, começou a aparecer a vegetação, plantas pequenas iam surgindo pelo caminho, preenchendo espaços entre uma duna e outra, até que as dunas começaram a ficar menos frequentes, dando espaço para uma vegetação rasteria cada vez mais presente. No horizonte a construção a qual pertenciam as torres se definia. Era como um Castelo enorme, rodeado por uma extensa muralha, quatro torres maiores se posicionavam nas quatro direçôes cardinais. A muralha era de um branco acinzentado muito marcante, que adquiria um contraste profundo com o verde fosco da vegetação ao seu redor. Não avistei ninguém a princípio, mas ainda estava a uma certa distância do Castelo.
Aumentei a intensidade de minha marcha, o Sol logo iria se por e eu não queria estar longe dos portões em terras desconhecidas.
Quando cheguei ao pé da muralha, não havia guardas nas torres, nem portão que proibísse a entrada pelo arco principal, também não existia fosso ou algo parecido, para dificultar o acesso a muralha ou ao arco de entrada. Foi quando eu percebi que da base do muros saiam pequenos canais que se estendiam por linha reta vários metros a frente invadindo o campo de vegetação em torno do Castelo, dos canais saia uma àgua limpa, cristalina como eu nunca havia visto antes parei o cavalo ao lado de um dos canais desci e mergulhei minha mão do pequeno riacho que corria por ele. A água não era nem quente nem tão fria, mas era resfrescante, enchi a palma de minha mão e levei um pouco até minha boca. Não tinha gosto, mas ao prová-la percebi uma suavidade e vitalidade doces entrarem em minha alma. Percebi que provavelmente todo o terreno verde ao redor do Castelo era irrigado por esse canais, isso explicava porque numa terra tão árida onde as chuvas são tão escassas poderia haver tanta vida. A água vinha de dentro do Castelo.
Me apressei para chegar ao arco de entrada, era todo esculpido de modo tão belo, mas também tão simples, que eu poderia ficar olhando por horas a fio, ao cruzar o arco pude ver uma das coisas mais belas que eu jamais vi em minha vida. A muralha simples e as quatro torres escondiam dentro de si um jardim ornamentado com uma diversidade de árvores e plantas incríveis, havia pequenas construções que se mesclavam com as árvores a ponto de não se perceber o que era construção e o que era árvore. As árvores eram brancas acinzentadas como os muros e as contruções, de modo que tudo parecia feito do mesmo material, tudo parecia carregar vida dentro de si.
O jardim era circular como a muralha, começava na base do muro e se estendia até chegar ao centro do pátio não havia uma contrução que não fizesse parte do jardim e não havia nenhuma parte do jardim, que em si mesmo não fosse ornamento de uma construção. Tudo tão harmonico e perfeito.
Chegava a ser ímpossível definir se tudo era jardim ou uma pequena cidadela. Na verdade era um misto de ambos. Pequenos caminhos, pavimentados com o mesmo tipo de material se estendia pelo meio do jardim, servindo de passagem para as diversas partes do castelo, creio eu.
Caminhei por algum tempo pelos caminhos, até encontrar o centro do pátio e consequentemente o centro do jardim. Lá onde tudo parecia se originar, e para onde tudo apontava, havia uma fonte. Esculpida a partir de uma parte que parecia brotar do próprio chão, a fonte era de uma arquitetura simples, mas singelamente bela. De uma beleza encantadora, e dela brotava a àgua que irrigava os canais, que se originavam na fonte, corriam e atravessavam o pátio e iam desembocar no terreno fora das muralhas.
A fonte trazia vida a tudo que existia no castelo, e fora dele, não havia uma árvore ou planta do jardim que não fosse irrigada pelas águas cristalinas da fonte.
Em torno da fonte haviam flores, muitas flores, de diversos tipos e cores, que eu não conhecia. Todas elas exalavam um perfume suave mas marcante e pintavam com suas cores uma alegria sem igual em torno da fonte, como se quisessem marcar o ponto inicial e final de toda a vida ao redor.
Me ajoelhei e beijei o chão onde pisava, agradeci ao Criador por ter encontrado um lar, uma fortaleza para me refugiar.
Aqueles foram dias felizes, de manhãs de Sol, cuja luz refletia no branco de tudo e iluminava tudo ao redor, eu sentia o calor que emanava de tudo quanto existia no jardim, pois tudo quanto existia pulsava de vida e me contaminava de uma forma que eu acreditei ser irreversível. Coloquei meus tesouros ao lado da fonte de forma que eu pudesse olhar todos os dias e perceber que o Criador me abençoou com tudo o que eu havia encontrado, e que toda minha vida tinha me levado até ali. Eu ouvia a vida que corria pelo jardim, pequenos animais que alí existiam, os frutos das árvores dos quais eu me alimentava, a brisa no final da tarde que me aliviava a alma, e o amigos que ali recebi e as vezes que à eles falei de minha alegria por ali estar, e por tudo que eu havia ganho. Eu não amava só aquele lugar, mas tudo o que aquele lugar havia me trazido de bom.
E a noite quando o Sol caía e a lua despontava no céu, o vento batia nas folhas das árvores e produzia uma melodia tão doce e nostálgica que os pássaros de seus ninhos cantavam junto com as árvores uma canção sem nenhuma palavra, mas que me dizia tanto sobre mim mesmo de uma forma tão profunda, e eu adormecia nesse sentimento. Não era só eu que estava naquele lugar, o lugar também já estava em mim.
Até que um dia, o qual jamais esquecerei, enquanto durante o primeiros raios de Sol eu caminhava pelo jardim, encontrei nos fundos do Castelo, um caminho que eu não conhecia, que eu nunca tinha visto ou trilhado, e que se perdia na imensidão a frente.
Fiz esse caminho que havia me levado até uma escada, que descia nas profundezas abaixo.
Pela primeira vez encontrei algo que não era harmonioso com todo o resto. A escada escavada no chão, era de um outro tipo de minério, diferente da muralha e das construções. Era escura e fria, trazia dentro de si uma tristeza inpronuciável. A medida que eu descia sentia frio, muito frio, e a luz ia ficando para trás, e havia um medo crescente que emanava das profundezas para onde a escada me levava.
Parei na metade do caminho, e voltei, com medo de ver o que havia no fim da escada.
Mas o dias nunca mais foram os mesmos. Mesmo com o calor de tudo que emanava, mesmo com a vida ao meu redor, e com as melodias da noite, eu ainda pensava na escada e para onde ela conduzia.
De modo que um dia, eu retornei, e desci até o fim.
Havia uma atmosfera densa e pesada no fim da escada. olhei para cima e a luz do dia mal conseguia ser vista, portanto mal iluminava o que existia a minha frente. Quando terminei de descer, parei em frente a uma porta de madeira maciça. Parecia feita com o tronco das árvores, mas não era branca nem pulsava de vida. Era mais escura, e pulsava com um frio que me gelou a mão.
Era um porão, acredito eu, mas a porta era tão espessa, que quem quer que o tenha feito, o fez para permanecer lacrado.
Havia alguma coisa escrita na fechadura, mas já era tão antiga que não pude ler. Hoje percebo que talvez fosse uma advertência. Advertência que eu infelizmente não levei a sério.
Segurei no metal frio da fechadura, e o puxei com toda a força que eu tinha, aos poucos a porta foi se movendo até abrir.
Nesse momento senti uma rajada de ar frio, que veio de dentro do porão, um ar de certo modo, ancestral, que havia sido aprisionado ali há muito tempo, seco.
Não senti nada maligno, mas havia uma atmosfera de tristeza profunda que me invadiu a alma e pela primeira vez desde que havia chegado eu chorei.
Subi as escadas como uma sensação de vazio por dentro, que aos poucos me dominou.
O dias que se seguiram foram tristes e funebres. Percebi que aos poucos a água, a vida da fonte, começou a secar, e eu via desesperado, toda vida que me cercava ir embora. De algum modo, que eu ainda hoje não sei, o porão fez a fonte secar.
As folhas das árvores cairam aos poucos, não havia mais musica a noite, e eu já não dormia. O pássaros se foram os animais também. Tudo que era de um branco acinzentado marcante, aos poucos foi escurecendo, como a porta do porão.
A paisagem verde do jardim, que me trazia tanta alegria, começou a definhar como o sentimento que eu tinha, e de verde passou para castanho pálido de folhas secas, até que por fim, não existia mais vegetação, nem castanha nem verde.
A fonte finalmente secou, e o Sol da manhã não era mais refletido, mas absorvido, de forma que sempre existia uma penumbra dentro do Castelo. Nem mais as luzes o visitavam.
As Noites era tão silenciosas, a não ser pelo vento, cortante, que trazia um canto solitário de lamento, pelo que um dia foi, mas que já não existia mais.
E durante muitos dias eu caminhava no pátio, de olhos fechados, imaginando como tudo tinha sido, me prendendo a uma lembrança doce, de um passado cada vez mais distante.
Eu estava no lugar, e o lugar estava em mim, de modo que eu também morria aos poucos.
Até que um dia, numa tarde de verão, veio uma tempestade, e choveu pela primeira vez desde que eu havia chegado ali.
E enquanto eu estava sentado no pátio, sendo molhado pela chuva, eu chorei.
Chorei uma dor sem palavras, uma saudade sem tradução, um verdito irrevogável de solidão.
Mas a chuva passou, e um raio de Sol entrou novamente pelas muralhas, e então eu vi o cenãrio desolado que estava ali.
Levantei de alma limpa, olhei para os céus, como quem busca uma resposta do Criador, e percebi, lá no fundo, que aquele não era o meu lugar.
Peguei os meus tesouros ao lado da fonte, meu cavalo, e parti pelo arco principal. Quando cruzei o arco, vi a desolação do campo de areia, que antes era de um verde tão lindo, mas agora era vazio, como tudo o que o cercava.
Circundei a muralha, até achar uma caminho, para uma encosta atrás do castelo. E percebi que a vegetação era mais densa no topo do monte. Ainda existia vida por alí. Respirei fundo, e cavalguei até lá.
Esses são dias esperançosos. No topo da enconsta, não havia castelo ou fortaleza, mas havia um riacho, de águas cristalinas, tão suaves e revigorantes quanto a que eu encotrei no castelo, talvez a fonte se alimente daqui, não sei.
Conheci muitos bons amigos, e redescobri amigos antigos, que hoje percebo, não conhecia de verdade. Com sua paciência e amizade, eles têm me ajudado a construir minha própria fortaleza. Hoje percebo que aprendi muito sobre mim mesmo e sobre onde devo estar. Sei que tenho que construir um porão, pois nem tudo eu quero manter a vista, mas que não devo deixa-lo lacrado. Se ele acumular coisas por muito tempo, pode acabar contaminado o que nexiste de bom.
As manhãs tem sido muito edificantes. meus amigos sempre conversam comigo, e percebendo minha dor, me abraçam. As vezes me dizem coisas bonitas, as vezes ficam apenas em silêncio com um olhar que diz "estamos aqui", e eu me sinto feliz por te-los comigo. No fim da tarde quando todos os passaros cantam e o cheiro da relva me domina. as folhas das arvorés balançam, cantando uma canção, que novamente não tem palavras, mas que me fala profundamente de um novo tempo, de um recomeço, de um novo encontro.
Então eu sento, olho para o céu, e oro para o Criador, agradecendo por essas pessoas que Ele colocou em minha vida, e através das quais, eu acredito profundamente, Ele fala comigo.
Desde que cheguei aqui, todas as manhãs, eu observo o castelo abaixo, triste e vazio, colho algumas flores e desço até lá. Meus amigos se entreolham, e num silêncio passivo, me respeitam, sabendo que nada sai de ninguém da noite para o dia.
Todos os dias eu chegava, ia até a fonte seca, plantava as flores na terra árida, e fazia uma oração, pedindo pelo retorno da vida naquele lugar. No dia seguinte eu retornava com novas, e retirava as flores do dia anterior, mortas e secas pela aridez do solo.
E hoje eu voltei, para o mesmo ritual, e percebi que as flores que eu plantei, não haviam secado, coloquei minha mão na terra e ela estava húmida.
Sorri, pois a vida estava voltando. Ao invés de pedir em minha oração, eu agradeci.
Subi no meu cavalo, e olhei pela última vez tudo ao meu redor, e me veio um sentimento de nostalgia, dos tempos de vida e alegria. A vida estava retornando, o porão talvez, finalmente, estivesse vazio. Havia esperança
Suspirei e disse "Adeus".
Eu não estava mais naquele lugar, e aquele lugar não estava mais em mim.

2 comentários:

Anônimo disse...

Vitor quando li " Minha Fortaleza", senti-me "invadida", pois cada palavra parecia ter sido tirada de dentro da minha alma... o seu texto me fez refletir na minha Fortaleza q se perdeu....me fez refletir na Fortaleza q estou construindo, mas q muitas vezes desaba por eu não conseguir me desvenciliar da Fortaleza q se perdeu...
Daniela T.

Vitor disse...

Oi Daniela, que bom que vc se identificou. Quando escrevi criei uma metáfora para minha vida, enfatizando a intensidade e modo da minh alma. E acredito que todo mundo já acreditou em alguém ou em um lugar que julgava ser sua Fortaleza, mas que sofreu uma desconstrução, só para descobrir que podia construir a sua própria Fortaleza.
Se puder, leia mais e comente, é sempre bom saber o que todos pensam sobre o que escrevemos. Afinal, o blog é para compartilhar :-)
Bjos

Vitor